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Criança Selvagem


Nós morávamos numa casa enorme na zona norte. Uma casa muito silenciosa envolta em enormes e pesadas cortinas brancas que nos escondia do mundo ensolarado lá fora. O que quebrava a densa nuvem de silêncio era a nossa chegada da escola porque eu e minha irmã almoçávamos assistindo tv. Mas nada ao longo dos anos conseguiu romper completamente a surdez daquele invólucro.


Um dia eu consegui abrir um pedacinho bem pequenininho da cortina da sala e fiquei ali observando com um olho só o pouco que acontecia naquela vizinhança apática. Uma hora passou o carro da laranja, mas ninguém parou para comprar. Outra hora chegou o gari com um carrinho e uma vassoura para varrer as folhas caídas de um dia para o outro. Eram poucas, o vento mal movimentava os galhos das árvores. Dali a pouco passou uma criança sozinha e ela parecia só um pouco mais velha que eu. Essa criança tinha uma mochila nas costas e mascava um chiclete no meio da tarde. Pela atitude acabei achando que o chiclete podia ser aquele com recheio sabor banana que era meio difícil de encontrar na época. Mas o importante é que ela era uma criança sozinha caminhando por toda a vasta extensão da rua, equipada apenas de sua mochila nas costas. Arrisquei abrindo um dedo a mais da cortina e a segui com os olhos até perdê-la de vista. Até onde consegui acompanhar, realmente ela não encontrou nenhum pai, nenhuma mãe e nenhuma avó pelo caminho.


Voltei para dentro de casa e o silêncio permanecia ali, intacto, circulando como qualquer outro membro da família. Sentei no sofá para pensar um segundo na criança que acabava de passar pela rua e deduzi o que para mim parecia o óbvio. Aquela era uma criança livre, selvagem na cidade grande. Sabia o nome das ruas de cór. Andava sem pressa e afirmativamente mesmo sem saber aonde ir. Vivia as aventuras de um mundo emancipado do abraço apertado de um adulto. Era uma rebelde e sabia que os mais velhos domesticavam crianças assustadas como eu.


Naquele dia não fiz a lição de casa e também não perdi meu tempo brincando na sala. Não assisti tv e não tirei um cochilo à tarde. Estava ocupada como jamais estivera. Peguei um toco de giz de cera, uma folha da agenda da minha mãe e comecei a fazer uma lista de itens de sobrevivência para colocar numa mochila minha.

  • 2 rolos de papel higiênico

  • 2 trocas de roupa

  • 1 garrafa d’água

  • 1 pacote de bolacha

  • 50 reais

  • 3 gibis da Turma da Mônica para passar o tempo

Eram poucas coisas, mas parecia o suficiente para passar uns dias até arranjar um outro lugar na cidade. Tentaria conseguir uma casa que tivesse paredes laranjas e quentes de um sol que entraria ruidosamente pelas janelas. Eu tinha um plano. Pensei que se tomasse bastante água antes de dormir, a bexiga cheia me despertaria mais cedo que o alarme que nos acordava para ir à escola. Então eu sairia mansa na calada da noite tendo os últimos minutos da lua guiando a minha petulância. Tudo certo.


A parte mais difícil seria violar minha própria inocência para furtar cada um dos itens da minha lista, então comecei do mais fácil para o mais difícil. Fui ao banheiro fingir estar apertada, tranquei a porta e ajoelhei encarando o gabinete da pia por alguns segundos. Toda vez que encostava no puxador minhas mãos vacilavam e voltavam atrás, elas não queriam fazer aquilo. Tive que me convencer de todas as formas, primeiro dizendo que poxa vida, eram só dois rolos, ninguém daria falta pelo menos até o dia seguinte. Depois fiquei com raiva de mim mesma. Que espécie de pirralha eu era que não conseguia passar a mão em papel higiênico sem me culpar pelo resto da vida? Depois disso abri a portinha o mais rápido que pude e arranquei não só dois, mas três rolos novinhos da embalagem de plástico. Enfiei por baixo da camiseta e saí do banheiro correndo em direção à mochila que estava montando sob as cobertas da cama. O resto das coisas não levou nem dez minutos. Enquanto minha avó tirava as roupas do varal eu abri a gaveta de roupas e tirei calcinhas, meias, duas camisetas, dois shortinhos e um pijama de frio. Minha vó dobrava os lençóis na mesa da cozinha quando peguei uma garrafa vazia para encher com água do filtro. O filtro engolia grandes doses de ar quebrando o silêncio entre nós duas.


- Tá com sede, hein! - e riu baixinho.


Acenei com a sobrancelha e dei um sorrisinho sem mostrar os dentes. Abri a porta de madeira da dispensa e o barulho soou como um grito tropeçando nos quatro cantos da cozinha. Arregalamos os olhos uma para a outra.


- Vai acordar sua mãe…


Ela me viu pegando um pacote de bolachas e se virou desistindo de qualquer comentário que tinha a fazer. Eu queria bolacha com recheio mas só tinha água e sal, aceitei para não fazer mais alarde. Saí de fininho ainda apertando a tampa da garrafa entre os dedos.


E então eu tinha que conseguir os cinquenta reais na bolsa de couro marrom que ficava sempre no mesmo lugar da mesa de jantar. A bolsa que minha mãe carregava pra lá e pra cá e que nos comprava boa comida, sapatos novos, roupas quentes, educação de qualidade, um teto para um lar triste, mas bem decente para duas meninas de família. E agora eu tinha que mexer no bico que alimentava os passarinhos filhotes. Comecei abrindo dente por dente do zíper da bolsa para que minha vó não escutasse o som grave de minhas mãos leves. Eu segurava com firmeza a tremedeira para não escorregar os dedos suados. Enfiei o punho dentro da bolsa e fui remexendo de qualquer jeito tentando enxergar as diferentes texturas dos objetos. Apalpei o batom cor de boca de todos os dias, os mesmos óculos da década de 1980, dorflex à beça, chiclete de canela. E finalmente a carteira de couro preta. Trouxe a carteira para perto dos olhos e a abri rapidamente com as mãos sambando diante do meu rosto procurando sem sucesso uma nota de cinquenta reais. Os bolsos maiores estavam cheios de talões de cheque por preencher, os bolsos médios guardavam cartões de banco e os pequenos estavam recheados de moedas e notinhas de mercado. “Puta merda!”, teria pensado se fosse mais velha. Fechei a carteira não mais com o cuidado de antes, mas com certa desolação. Abri a bolsa novamente, desta vez enxergando com os olhos e não mais com as mãos, encarando todas as suas divisórias. Antes de voltar a carteira avistei uma nota de cem reais perdida entre papéis amassados. Meus olhos arregalaram um pouco por felicidade, um pouco por pavor. Cem reais! Cem reais... eu teria que ser o dobro de ladra, o dobro de mal-educada e o dobro de mentirosa para sair com todo aquele dinheiro de casa. Teria que passar o resto da vida me escondendo da vergonha de ser tão trapaceira. Lembrei de quando os meus tios conversavam no almoço de domingo que crianças não mentem, crianças são sempre sinceras, crianças são verdadeiras em tudo o que dizem e em tudo o que fazem. Vacilei com as mãos vazias. Em seguida pensei na criança que passou pela rua mais cedo e a imagem dela não se parecia em nada com a de um anjinho puro e besta. Talvez eu ainda fosse uma criança e ela já fosse uma não-criança. Eu também queria ser uma não-criança. Agarrei a nota de cem e fechei bem apertada dentro do punho antes de cerrar o zíper e sair correndo em direção ao quarto novamente.


Escondi meio de qualquer jeito e cheia de pressa todas as coisas dentro da mochila, o coração batendo mais forte que uma escola de samba e dentro de mim era só carnaval tamanha a euforia de ter roubado tantas preciosidades. Naquele momento lembrei que ainda queria os gibis da Mônica, mas deixei a ideia para trás. Minha irmã precisaria de uma distração quando a família começasse a surtar com o meu sumiço.


A noite começava a avançar e em algumas horas já seria de manhãzinha. Aqueles eram meus últimos momentos vivendo na enorme casa apertada pela névoa do silêncio. Pensei que deveria escrever uma carta para a minha mãe abrindo o jogo sobre a minha partida. Eu precisava me fantasiar, pela última vez, da infantil incapacidade de mentir que eu estava deixando para trás. Então empunhei o toco de giz de cera novamente e encarei a brancura do papel por alguns minutos.


“Mamãe,

Desculpe ter desperdiçado água todos esses dias. Fingi tomar banho deixando o chuveiro ligado para ler sozinha trancada no banheiro. Gosto do barulho do chuveiro.

Beijinhos e até mais.”


Decidi que estava bem com esta carta. “Senão a verdade, ao menos uma verdade qualquer”, foi o que pensei, mas com outras palavras na época.


Depois da euforia, comecei a sentir o peso de todas as despedidas. Eu teria que me despedir do meu esconderijo secreto embaixo da escada onde passava as tardes concentrada em fazer nada. Às vezes assistia atentamente uma aranha tecer uma gigantesca teia entre os degraus, às vezes me distraía imaginando minha família preocupada sobre onde eu estaria, outras vezes apreciava o silêncio que vivia dentro de mim e tudo ficava em paz. Teria que me despedir das histórias de quando meu avô era criança e matava passarinhos com estilingue nas roças de Minas Gerais, do sotaque caipira da minha avó que mesmo depois de tantos anos ainda resistia como se sua língua fosse uma das pedras dos morros intocados de onde nasceu. Teria que me despedir dos teatrinhos de bonecos que fazia com a minha irmã e de seus olhos decepcionados quando eu dizia que não queria mais brincar. E o mais triste de tudo, teria que me despedir da árvore de graviola que ficava no jardim e das flores rosa fosforescente que chegavam a arder os olhos de quem passasse pela fachada nos dias mais quentes da primavera. Mas… pensei. Se meu avô havia matado canarinhos com estilingue e tinha levado uma boa vida depois disso, eu ainda tinha chance de me redimir com o destino por ter feito minha mãe chorar.


Virei a garrafa de água em longos e audíveis goles que desceram sólidos pela minha garganta.


Deitei na cama e chorei a tristeza de deixar a minha irmã e a culpa de fazer minha avó sofrer, mas o coração fervia de urgência e vontade, ainda imaculado das sujeiras que um dia me atravessariam. E adormeci com a chave de casa colada no meu peito. Adormeci profundamente no sono de uma criança selvagem. Os desconfortos consolados pela fronha molhada do travesseiro afogando meu rosto. Sonhei que chovia lá fora e ficava irritada que a chuva não era como o chuveiro de casa, não podia ser desligada.


Despertei. Meus olhos se entreabriram ainda grudados de sono e eu não sabia que horas eram. Minha bexiga apertava e os pássaros cantavam, mas eu ainda não sabia que horas eram. Ouvi minha avó entrar no quarto e abrir a gaveta onde guardava os uniformes escolares.


 

Obrigada por ler este post :)

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